Aline Frazão e uma noite em pontas de pés

Quando era pequena dizia que era com ele que queria cantar. E naquela noite a Aline já era uma miúda crescida. Em cima do palco do Cinema São Jorge, em Lisboa, estava pronta para chamar por ele. Ele apareceu do lado direito, meio tímido, como se não estivesse habituado a isto. A plateia, há muito que estava pronta para lhe bater as palmas, não fosse ele Paulo Flores. Num semba de outros tempos, juntos entoaram "N'guxi", de Belita Palma.

A ansiedade dele era outra: queria dizer que tinha muito prazer em estar ao lado dela, alguém com "uma abordagem com muita frescura". Percebe-se. É uma contestatária suave. Numa voz de embalar enumera as coisas com as quais não se sente bem, escolhe palavras subtis para isso e diz que aquela coisa de «Primeiro Mundo» existe só de brincadeira.
A consciência de Aline saiu do palco (ou da boca) com «Na boca de Angola» ou «Caminho do Sul». Perguntou aos presentes se sabiam para onde este ficava a partir daquele lugar no “coração de Lisboa”. Os gestos indicadores de bússolas humanas foram interrompidos quando ela avançou com a sua teoria: “O caminho que nós, Humanidade, temos que percorrer é o do Sul. O Norte tem/precisa de aprender com o Sul”. As bússolas, essas, concordaram com risos de quem está a abanar com a cabeça que “sim, é isso mesmo, Aline”.
Mas nem só disto viveu o dia 4 de Novembro. Com passos e arrastões de garganta a fazer lembrar uma Mayra Andrade ou outras gentes de Cuba, uma angolana Aline, mais expansiva e adjuvada pela força de um contrabaixo, apareceu logo aos primeiros minutos com «No Céu da Tua Boca» (de José Eduardo Agualusa, algures numa das cadeiras), «Oriente» ou com «Assinatura do Sal» ou com o próprio «Clave Bantu», nome homónimo do álbum lançado em finais do ano passado. 
                                          
A escrita feita entre viagens a Luanda, Barcelona ou Madrid, Santiago de Compostela haveria de trazer o primeiro convidado das terras da Galiza. Ela conheceu o António por aquelas bandas e, ali, num “amor à primeira vista” (palavras dela), nasceu isto: uma cumplicidade vincada com uma dança minimal no centro do palco, entusiasticamente aprovada por uma plateia que sabia a voz que ia sair de Zambujo-pés-de-chumbo. O fadista português com «Barroco Tropical», mais que ensaiado mas com tanto de improviso, foi o mote para uma Aline melancólica.
Numa acapella com jogos de luzes lunares, uma kalimba nas mãos e de perfil para o microfone, Aline entoou «Poema em Sol Poente» e com «O Que Ela Quer». O balancê de outro alguém chegou quando «Lisboa Kuya» foi apresentada a quatro mãos e com outras tantas cordas em duas guitarras. De um lado Aline, do outro Sara Tavares. Esta, com a postura de quem sabe brilhar só quando deve, deixou que o protagonismo lhe fugisse, embora sem a teimosia de Aline. “Tudo à volta de ilumina sempre que ela surge”, descreveu sobre Sara.

O encore obrigou a um regresso dos convidados ao palco (ainda que meio perdidos no espaço com os ossos do oficio do improviso). Com «N’zaji» (aqui ainda só com Paulo Flores) e com «Babel» em decrescendo e em uníssono, a noite foi fechando com uma sala quase cheia ainda que entusiasta q.b., como quem acaba de comprar um livro do qual pouco ouviu falar. Aline, segura através de um alinhamento quase cronológico e colado ao formato gravado de «Clave Bantu» deixou pouco espaço ao silêncio no meio da sua bossa-nova, jazz e sembas de Angola ou mornas de Cabo Verde.
A saia longa, até aos pés, escondera os ténis, o sorriso cândido fora a consequência de uma noite número um e os caracóis assumidos completaram o ombro destapado de uma Aline grandiosa, dançante, com uma altura para além da ilusão. Solta, embalou o S. Jorge com uma voz límpida, por vezes, quase demais. De tão confortável, confessou a meio da noite: “Quero que saiam daqui com a certeza de que estou muito feliz”.

Com um desprendimento típico dos 24 anos, Aline, com Frazão no apelido, tem a certeza que A saudade não marca hora/na agenda do dia/nem vai embora. E eles também parecem que a têm. “Ainda bem que me ofereceste o convite e vim até aqui”, desabafou um amigo para o outro, enquanto abandonava a fila à nossa frente.
fotos: Joana T.

A mística do Misty Fest voa, amanhã, para o quinto dia do festival no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. As honras cabem a Peter Hook & The Light com Joy Division no menu. O encontro está marcado para as 21 horas no Grande Auditório.
Veja aqui o cartaz completo dos próximos dias:
Dia 9, John Talabot, Lux, Lisboa | 23h
Dia 10, B Fachada, Centro Cultural Olga Cadaval, Sintra | 22h
Dia 11, Amélia Muge e Filipe Raposo, Centro Cultural de Belém (Pequeno Auditório), Lisboa | 21h 
Dia 15, Osso Vaidoso e Lucas Bora-Bora, Centro Cultural de Belém (Pequeno Auditório), Lisboa | 21h 
Dia 15, The Irrepressibles, Lux, Lisboa | 23h
Dia 16, Celina da Piedade, Centro Cultural de Belém (Pequeno Auditório), Lisboa | 21h 
Dia 17, Cowboy Junkies, Centro Cultural de Belém (Grande Auditório), Lisboa | 21h 
Dia 19, Cowboy Junkies, Casa da Música (Sala Suggia), Porto | 21h 


Sem comentários:

Enviar um comentário