Crítica: Disco Capicua

Capicua/Capicua
Optimus Discos
5.5/10
2012

Tem um sotaque tão proeminente quase igualável ao de Reininho-Silvestre em «Pronúncia do Norte», ou ao de Abrunhosa nos seus discursos eloquentes. Mas aqui a estória é outra. Não é música popular, nem pop no estado puro, mas é um pop com hip e rap. De original, tem o cabelo longo, os lábios carnudos, o aspecto roliço e o cabelo apanhado uma vez ou outra. Chama-se Ana Fernandes e é rapper. A imagem de rapariga dos subúrbios (daqueles meandros inspiradores para rimas com dramas) não é imaculada. Tem pontas ou réplicas de miúda mais citadina do que (sub)urbana.
Apareceu no panorama musical de braço dado com os melhores padrinhos, como D-one, Nelassassin ou Sam The Kid. Em o «1ª Dia» aproveita para explicar porque quis fazer isto: “faço rap porque gosto, essa é a única razão”, no meio dos beats inconfundíveis de D-one. Estes instrumentais continuam em «Os Heróis» ou em «Medo do Medo» numa versão de Ana zangada. “Não vale a pena decorar a tabuada/Temos tudo o que é estudo, emprego zero”, “Eles têm medo que não tenhamos medo”. A última frase, do segundo single do seu álbum de estreia, mostra que este foi feito na ebulição de um país em crise, ao mesmo tempo que a impaciência de Ana continua em «Domingo» onde implica com “dois sábados seguidos” ou com a ”fatiota de dar a volta no shopping”. O que é preciso é uma «Terapia de Grupo» para pôr o país a mexer. “Há que falar de culpa, viver a vida adulta sem peso na consciência. É preciso uma coisa que dê furtos para sermos um país livre de paranóia, para sermos um país livre da sua história, ainda não recuperámos de uma relação difícil, quarenta e tal anos governados por um imbecil”, contesta Ana.
Mas as turras com o mundo não se limitam ao seu discurso político, adquirido enquanto crescia a ouvir José Afonso ou José Mário Branco. No meio dos seus quase tenros 30 anos, Ana ainda sofre por aquelas coisas do amor, das dúvidas e outras que tais. Diz que há «Hora Certa» de ir embora quando o gostar chega ao fim: “Foram anos que ofereci a um coração carente. Com é que eu te largo, faço o luto e mando fora, como é que eu luto contra o susto da ruptura e asseguro que não te quero no futuro”.

Mais melosa, ainda que sempre dona de uma rima pronta, feita da consciência de uma miúda endiabrada, ela parece uma igual a tantas outras. O sonho chama-se «Casa de Campo» e é uma das faixas mais criativas de todo o disco. Confessa que esta faz parte das suas exigências e que quer que esta "cheire a flores e frutos, a gomas e sugus, a doces e sumos, com lareira e fogo brando, que ilumine todo o ano, o sorriso de quem amo". "Uma casa de campo que pode ser na cidade, mas tem de ser de verdade, mesmo não tendo morada", mostra uma Ana mais infantil, romântica, que chega a referir-se ao personagem Anita dos livros de outrora, num final de cadência soft. «Sagitário», ainda nos inícios, é outro dos momentos mais surpreendentes. Agradável ao ouvido, e com o beat de Xeg (a fazer lembrar o mixtape dos Orelha Negra ou a banda do sonora do Crime do Padre Amaro), perde força nas letras, quase como a própria Ana.

Com o dedo d'O Miúdo Samuel, o single de apresentação «Maria Capaz» serve para mostrar que ela é mesmo uma Mestre de Cerimónias, mas sem qualquer tipo de cerimónias ou manias, mas muito ego. Assume-se como "comandante da guerrilha cor-de-rosa" ou uma "abelha rainha". Numa palavra, "no R A P, sou eu que reino, rapaz". E ponto final. Só que a dúvida é mesmo esta. Será Ana (ou a Maria) capaz de reinar se os rapazes já cá não estivessem. Canta os mesmos problemas, canta-os da mesma forma, canta as mesmas soluções, Fá-lo é num tom mais feminino. Com sorte se chega a uma capicua, feita de partes iguais, e da mesma sorte esta Capicua vai precisar dela. Mais díficil do que tê-la, é mantê-la. Tornar-se intemporal vai exigir-lhe mais do que ser apenas uma Maria.


 

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