Rubrica: Este é o primeiro riff do resto da tua vida #3

"Dizedores" de palavras 


Desde que me lembro de mim que assumo uma ligação muito intima com a escrita. Sempre me senti bem entre linhas, canetas e lápis. Curiosamente era com os lápis que, no ensino primário, tinha maior ligação, mais do que não fosse por passar o tempo a “mordiscá-los”, o que irritava a professora, enlouquecia os meus pais e trazia-me um arrependimento louco. Enganem-se os que pensam que me arrependia por ouvir um ou outro sermão, pois esse sentimento de culpa surgia quando via a ponta vermelha dos tão famosos lápis “HB nº2” completamente “desfigurada”. Lembro-me de pensar que tinha exagerado nas “dentadas” e que odiava ver o meu material escolar assimilar-se a um, e desculpem-me a expressão, “barrote” de madeira, típico no uso da construção civil, mas a tentação era superior à razão e mais não se podia exigir de uma criança, não acham?

De pressa as pequenas composições, avaliadas entre maravilhosos “muito bom” ou apenas agradáveis “bom”, transformaram-se em pequenos relatos pessoais, poesia e até pequenos apontamentos aos quais ainda hoje não sei que nome atribuir.

Nos míticos tempos do Secundário, onde tudo parece fruto de uma revolução interior e de uma exaltação exterior, comecei a interessar-me por algo a que alguém chamou de “Spoken Word”, ato de interpretar e dar corpo a trechos poéticos, Odes e versos mais ensaísticos de forma muito expressiva e, quase sempre, acompanhados por trilhas sonoras responsáveis por criar cenários e ambientes sem o acrescento de qualquer imagem. Na época penso que o interesse nasceu das audições periódicas de As portas que Abril Abriu de José Carlos Ary dos Santos que, mesmo não sendo um exemplo óbvio deste movimento, demonstrava-me, com uma força abismal, as palavras de um homem com uma forma intemporal de ver o mundo.

Ary não estava só, pois a “flor da idade” trouxe-me Vítor Espadinha, que de uma forma muito própria encarou uma curta carreira musical, tendo ficado na minha memória pela participação no tema “Ouvi Dizer” de Ornatos Violeta, não só pela voz terna e escorreita mas também pelo texto que proferiu na gravação em estúdio. Adolfo Luxuria Canibal (Mão Morta), “protagonizou” um dos fenómenos mais controversos da minha história como “amante” de música. Primeiro odiei, depois estranhei e com alguma insistência, e se quiserem amadurecimento dos meus ouvidos, passei a consumir massivamente e a compreender a narrativa suja, agressiva e flamejante que suscitou em mim um certo amor pelo “ódio das coisas”.


Videoclip do tema "Novelos da Paixão"


Estávamos em 2009, ano de mutação, ano em que vivi um dos meus melhores verões enquanto “teenager” , mas em que ao mesmo tempo comecei a inteirar-me das dificuldades que o meu percurso de vida poderia vir a trazer-me. Dúvidas, projecções, incertezas, por esta altura preenchi resmas de papel de impressão com escritos, rascunhos e poesia decadentista e ao mesmo tempo comecei a recitá-la para um singelo gravador e a tentar pesquisar sobre a arte de bem dizer poesia.

Passava agora de autores intervencionistas, poetas “de há dois séculos”, e o meu “mestre” Cesário Verde, para pesquisas mais exaustivas a cerca de “Spoken Word”. Descobri Lydia Lunch, uma “anti-diva” dos anos 70/80 do movimento No wave que se dividia entre lírica sexual, “nua e crua”, submissão e opressão.
Nesta década viria ainda a destacar-se Patti Smith, herdeira dos míticos “Beatnik”, escritores anti - materialistas e de conotação democrata dos Estados Unidos da América, nas décadas de 50 e 60 e dos quais se destacou Allen Ginsberg. Patti foi uma dos responsáveis pelo movimento Protopunk, que colocou os clubes “underground” nova-iorquinos “no mapa”, assim como o histórico “Hotel Chealsea”, no qual habitaram músicos paradigmáticos como Janis Joplin, Bob Dylan, Iggy Pop e Leonard Cohen.


"Hey Joe" de Patti Smith  ao vivo (1976)

Um ano depois vim a descobrir dois novos projectos nacionais cujo aparecimento se deveu ao fim dos Da Weasel, banda de Rap – Rock nacional. Um dos vocalistas, Carlos Nobre (Pacman), veio a formar os “Dias de Raiva” e “Algodão”, dois projectos com visões algo diferentes, mas ambos com a genialidade do músico de Almada, que veio a destacar a sua faceta “Spoken” através de letras fortes, criticas e mordazes, capazes de calar qualquer voz mais púdica.

Do manifesto revoltado dos “Dias de Raiva” iniciei uma procura de novas bandas da “cena” Spoken Word e encontrei, com a ajuda de um amigo, um vídeo de uns norte-americanos que dão pelo nome de Listener* e são naturais do Arkansas. Apresentam um rock muito mais experimental, resultante do Génio de Dan Smith e Christin Nelson que de forma quase “louca” levam as suas atuações ao vivo a constar em canais de curiosidades no Youtube.

No último mês, quando menos esperava, “encontrei” uma nova banda nacional que, entretanto, tive oportunidade de assistir ao vivo e que me relançou a vontade de ouvir “coisas novas”. Osso vaidoso é um conceito muito português composto pela energia e suor de Alexandre Soares, guitarrista fundador dos GNR, e Ana Deus, cantora portuense que integrou a banda, da década de 90, Três Tristes Tigres. Responsáveis por dar vida a poemas “adormecidos” de grandes poemas portugueses, fazem-no de uma forma única, expressiva e muito teatral que dá “vaidade ao osso” representado pela sonoridade crua de uma só guitarra capaz de “blindar” as palavras a cada acorde.

Amanhã espero ouvir falar de mais alguém, alguém que não tema dizer o que algum dia escreveu ou leu num qualquer dia, seja ele bom, excelente ou menos bom, de preferência descrito da forma mais nua, fria e sem medo de ferir as susceptibilidades que o medo e a mentira gostam de instaurar.



*Veja aqui o video de "You Have Never Lived Because You Have Never Die", num concerto "intimista" dos norte-americanos Listener:




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