Crioulo, fado e saudade


Ninguém o pode negar:  A língua portuguesa está viva, recomenda-se e festeja-se a cada ano que passa. Celebrando o encontro entre sabores, cheiros e ritmos de quatro continentes.
Foi há mais de cinco séculos que os marinheiros cruzaram os oceanos, como uma melodia cruza uma pauta, e domaram um globo inteiro só para descobrir um novo mundo. Hoje as ondas, sonoras, partilham ritmos de África, Brasil, com este nosso cantinho ocidental.

De um rectângulo recortado, pequeno e encaixado numa península a sul da Europa, Portugal conseguiu tornar-se num império, que ainda hoje sobrevive. Já não são reis, nobres e senhores que o demandam, nem muito menos punhos firmes da ditadura e dos arsenais, mas sim uma palavra: A lusofonia.

A saudade é ponto de partida, seguida pelo pranto do fadista, do choro da guitarra e do ritmo do adufe, ser lusófono é ser preto, branco, mulato; tocar guitarra portuguesa e dançar kuduro. Pode até parecer estranho e, para os mais nacionalistas, castigar a identidade de um povo mas a verdade é que os musicólogos, historiadores e críticos da área assumem que não existe uma música puramente portuguesa.

Assim como os negros do Blues e do Folk nos Estados Unidos  influenciaram a música daquele pais usando o choro e as lamurias dos seus avós escravos, o fado também é um produto da experiência musical dos hoje chamados PALOP, assim  como de todas as trocas mercantis feitas entre países de todo o mundo. É evidente que Amália Rodrigues veio a influenciar o fado e a torná-lo no que hoje ouvimos, pois tornou-o poético e urbano, mas até ela  sofreu influências dos “ares” franceses durante o seu processo de criação.

Nesta mescla cultural o fado não está só, visto que até o próprio folclore nacional está crivado de “estilhaços” musicais dos nossos semelhantes lusófonos. Já Zeca Afonso o dizia por vezes quando tocava temas como Galinhas do Mato, que gozavam da experiência interventiva do autor português aliada a ritmos populares do interior do país e de Africa. Seguem-se nomes como Sara Tavares, Mariza ou Ana Moura que neste momento unem o melhor do mundo lusófono as experiências da pop e do fado.

Mas para que ouvíssemos estes nomes, muito teve de ser feito, visto que apesar do povo português estar aberto à imigração e às trocas culturais, residiram durante anos, nas mentalidades, um certo cepticismo em relação à música africana e brasileira. Durante os anos 60 a 80, a música lusófona sobreviveu muito à base dos canta-autores brasileiros Caetano Veloso ou Chico Buarque que assumiram uma grande importância na inserção de um novo folego musical no nosso país, acompanhado de sotaques cariocas e crioulos.

Os anos 80 deram a Portugal o boom discográfico que o país de camões já precisara há muito. Para além de projectos com olhares mais anglo-saxónicos, como os Táxi, os Heróis do Mar ou os GNR, surgiram nomes que viriam a unir a reconstruir a lusofonia das canções. António Variações ou a Banda do Casaco recuperavam, na época, as “malhas” beirãs, transmontanas e minhotas, muitas delas idênticas às de Bonga, Waldemar Bastos ou até mesmo Danny Silva. A verdade é que este novo olhar despertou a vontade de ouvir “novos” ritmos que abriram a porta a Daniela Mercury, Lura, Tito Paris, entre muitos outros. Por cá o hip hop começou a penetrar a pouco e pouco. Exemplo disso é a compilação “Rapública”, de onde surgiram nomes como “Black Company” que influenciaram o trabalho de dezenas de mc’s nacionais, entre eles Sam The Kid, Melo D, Valete ou Nigga Poison.

Mas este capítulo das influências dar-nos-ia pano para mangas, visto que o hip hop é como uma máquina do tempo que vai recuperando os velhos êxitos adormecidos. Cool Hipnoise deram nova vida à Bossa Nova, mais recentemente os Buraka Som Sistema deram electricidade ao revoltado e reivindicativo kuduro Angolano e até o Reggae foi visitado pelos portugueses através dos “históricos” Kussondulola, dos Terrakota ou dos Mercado Negro.

A música tem este poder de falar por si mesma, de se poder tornar um código linguarejo que remistura lembranças, pessoas, sentimentos, povos e de novo a saudade. A mesma de Cesária Évora, cabo-verdiana, a mesma dos Macacos do Chinês, Amadorenses, a mesma de dez milhões de portugueses que ao unirem a força das línguas, musical e verbal, com os seus “irmãos” lusófonos, dariam ao mundo muito mais do que apenas um buraco orçamental.  


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