A música, o mundo e o efeito boomerang #1

Era um desafio. Sempre foi. Desde o início. Quando a professora explicou que este seria o trabalho de casa, desde logo surgiram nós a formarem-se dentro da cabeça. A música está cheia de coisas semelhantes, de samples, de remisturas, de redefinições, de géneros metamorfoseados. Mas encontrar sons que possam coexistir, passá-los para sensações e que possam ser, depois, explicados em palavras já é outra história. O primeiro pensamento foi parar aos Thievery Corporation. São complexos, étnicos, imensos. Seria fácil chegar a alguém ou alguma coisa aos quais eles pudessem ser associados. No meio de dezenas de links e de um ouvido mais apurado do que o normal, a última paragem foi Nitin Sawney. Diga-se último, porque, afinal, antes dos Thievery, a voz de José Afonso teimava em não sair deste exercício áudio-com-história.

Na aula, quando a professora pediu uma razão para a união improvável, a explicação saiu assim: "Eles viajam muito. Usam diferentes influências, mas regressam sempre ao ponto de partida: à simplicidade". E esta é também a razão da nova rubrica do Off The Record: descobrir de onde eles (músicos) partem e como elas (músicas) chegam; os anos ou a distância que os separam (ou não); as diferenças e as semelhanças que os compõem. No fundo, fragmentar o porquê da lista de músicas que cada um de nós escolhe para ouvir é ela mesmo um boomerang.


Nitin Sawney & José Afonso  
A velocidade separa-os. A pureza dos instrumentos une-os. Professam uma música tradicional ou quase um folclore subtil dos dois mundos de origem. O britânico, com ascendência indiana, nasceu 35 anos depois do português das Beiras. Cruzaram-se durante mais de vinte décadas, mas o primeiro trabalho de Nitin Sawnhey chegou tarde demais para que José Afonso o pudesse ouvir (desapareceu em 1987).  

Spirit Dance de 1994 iniciava um percurso de um disc-jockey movediço entre o jazz, drum and bass, trip-hop e uma aura orquestral com vozes emprestadas asiáticas ou latinas. O melhor exemplo está em «Homelands», onde Nitin simplifica aquilo que é: complexo. A voz do português do Brasil que se ouve no final da música aproxima-o de José, mas só por um pedaço. O resto, que ficou para trás, faz lembrar as impaciências constantes do músico de intervenção de Portugal de «Canção de Embalar», «Os Índios da Meia Praia» ou «Milho Verde».


As coisas do amor de «Que o Amor Não Me Engana» de José podiam ter como fundo a «Breathing Lights» ou «Immigrant» de Nitin. A sensação de quietude de ambas, reforçada pelo piano da primeira, ainda que num ritmo remixado, transporta o ouvinte para um cenário de cura dos males daquelas coisas. As guitarradas de «Maria Faia» ou «Vejam Bem» fazem lembrar as influências que o sitar e as aulas de flamenco imprimiram num Nitin de «Prophesy».  


Se ambos buscam no classicismo a sua índole, José é mais solitário, não precisa de tanta gente ou de tantos sons do mundo. Já Nitin extravasa de um lugar de conforto, imprimindo uma globalidade àquilo que cria. É como se fosse um Zeca 2.0.

Mas Nitin é mais discreto, quase nunca expõe a voz. José é mais frontal, monopoliza a voz (invariavelmente trémula) para mostrar a firmeza no que quer dizer, sem que isso descure a montagem instrumental que o sustenta. Os acordes das guitarras, os instrumentos de sopro ou as percussões ajudam a fixar a imagem de que é uma voz além da música. Numa palavra: são quase invisíveis no meio das músicas imponentes. 

Nitin Sawney
Breathing Light
Immigrant
Prophesy

José Afonso 
Que o Amor Não Me Engana
Canção de Embalar
Os Índios da Meia Praia
Milho Verde
Vejam Bem

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