A house music é uma maria-vai-com-as-outras

"A distinção entre a música electrónica séria e popular tende a ser muito ténue mesmo na análise mais casual. Na verdade, muitos dos avanços registados na música electrónica foram o resultado de uma sobreposição dos dois". Quem o diz é Mark Brend, escritor e músico britânico, no seu livro The Sound of Tomorrow, que explica como a música electrónica foi contrabandeada para dentro do mainstream, editado em 2012. Os termos "séria" e "popular" são aqui utilizados com o seu propósito mais lato, isto é: o som "original" e o som "popizado".

A história da música conta-nos que a house music - género de música electrónica - nasceu em Chicago, no início dos anos 80. A mesma história explica que o termo musical se espalhou pelos bares e pubs da cidade norte-americana, onde os disc-jockeys assumiam os papéis de verdadeiros donos daquilo que saía das colunas: o disco fever de Donna Summer, o electro funk de James Brown, os sintetizadores de Soft Cell ou Depeche Mode, assim como o pop electrónico dos alemães Kraftwerk ou dos japoneses Yellow Magic Orchestra. Depois, juntavam-se os efeitos adicionais, o corte e costura do sampling, a parte da vontade aleatória do DJ. Aquelas mesmas discotecas ficaram ainda conhecidas por aglutinar públicos latinos e afro-americanos.

A música que se ouvia naquelas quatro paredes ganhou o termo "house music" num clube nocturno chamado The Warehouse, que existiu em 1977 e 1983, e no qual Frankie Knuckles era o responsável pelos pratos. No livro ‘House, a história’ (2006) de Rui Miguel Abreu, o público do Warehouse é descrito como “profundamente devoto”. O autor explica ainda que este carácter levou a que muitos manifestassem intenção de levar para casa os temas que Knuckles incluía nos seus sets. Para saberem tudo isto, tinham ao seu dispor a loja Imports Etc, onde a música tocada por Knuckles ganhava espaço. Chamavam-lhe Warehouse Music, designação que eventualmente haveriam de abreviar para House Music. O resultado? Para Rui Miguel Abreu é muito simples: “o nome [house music] apareceu antes do género ter começado sequer a gatinhar, um pouco à semelhança do que, mais ou menos ao mesmo tempo, aconteceu no Bronx com o hip-hop”.

E, por isso, o underground daqueles bares fundos chegou aos céus do mainstream quase sem se dar por isso. Esta febre das discotecas cedo se espalhou por Detroit, New York, San Francisco, Miami ou por uma Europa de Londres e Paris. Os exemplos de denúncias claras do género estão em «Forever More» (2003) dos Moloko, com semelhanças por demais evidentes com «House Nation» (1987), de House Master Boyz and the Rude Boy of Houses, ou «Doctorin» (1988), de Coldcut, ambos considerados como pioneiros pop a beberem a influência da cena electrónica.

Os italianos Black Box são uns dos mais notáveis exemplos da miscelânea: o engenhoso marketing em usar a imagem da modelo francesa Katrin Quinol, mas a voz da americana Martha Wash em «Ride On Time», no final dos anos 80, já mostrava um house fora dos seus parâmetros crus. Entretanto, em Nova Iorque, o trio Deee-Lite lançava «Groove is in the Heart», que se viria a tornar num ícone do house-groove-pop internacional, em paralelo com hip-hopiano «Power» ou o eurodance «Rhythm is a Dancer» do grupo alemão Snap.

Na década seguinte, Robert Miles com «Children» ou «Fable» enveredeva por um dream trance; Wamdue Project usava a voz do soul, Gaelle Adisson, em «King of My Castle», remisturada pelo produtor de house Roy Malone em 1999; «Don’t Give Up» de Chicane em colaboração com Bryan Adams derrubou o primeiro lugar de «American Pie» de Madonna nos tops britânicos no início de 2000. Mas a própria rainha da pop também já tinha experimentado os caminhos da dança electrónica nos inícios dos anos 90 com «Vogue», experiência que aprofundou em 1998 com o álbum Ray of Light e, em 2005, com Confessions on the Dancefloor.

No primeiro, trabalhou com o produtor londrino William Orbit (especializado em música electrónica), e com o qual fez de «Nothing Really Matters» e «Sky Fits Heaven» os melhores exemplos do que a pop era capaz de fazer quando trazia a electrónica para os seus meandros; e no segundo – apoiado na força de «Hung Up», single com acordes de «Gimme! Gimme! Gimme! (A Man After Midnight) dos ABBA - recorreu a Stuart Price, também produtor britânico, largamente conhecido pelas suas colaborações com Pet Shop Boys e New Order, talvez dos maiores culpados pela força do house e electrónica  à volta com o pós-punk em finais dos anos 70.

Desde o início do novo milénio, o protagonismo da electrónica foi ganhando outros contornos com Daft Punk, St. Germain ou Cassius. Ao introduzirem pedaços de funk e o som de sintetizadores analógicos na sua receita electrónica, os três artistas franceses estariam a moldar os standards do house posterior, tornando-o cada vez mais mainstream. A primeira conquista de um hit no Reino Unido por um DJ português, Rui da Silva, é um exemplo claro da plenitude do house. Corria o ano de 2001 quando «Touch Me» - e ainda sem ajuda de uma internet fogosa – rodava exaustivamente nas rádios e o seu respectivo video era emitido numa base diária no canal VH1. Nos dias de hoje, há supergrupos a fazer digressões por causa da house music, como é o caso de Swedish House Mafia, composto por Axwell, Steve Angello e Sebastian Ingrosso.

Para Brend, a mudança no consumo de música é uma questão de hábito: "Tornamo-nos aclimatizados gradualmente a novos sons. Em 1976, a destilação do rock and roll dos Ramones era demasiado para muitos". Mas "as coisas mudaram. Hoje em dia, uma vasta parte da música pop é electrónica ou parcialmente electrónica. Dificilmente faz sentido falar em música electrónica como um género, mas antes em muitos tipos de música que são feitos de forma electrónica".

Se o duo britânico de dança electrónica Tin Tin Out se prestou a partilhar a versão de 'What I Am' com a ex-spice girl, Emma Button, em 1999, dos originais Edie Brickell & New Bohemians; se no ano passado, o primeiro dia do festival Optimus Alive, em Portugal, fechou com uma actuação do DJ francês Justice no palco principal; e se há um programa de rádio chamado ‘Club Anthems’ com playlist de sons "housescos" que pode ser ouvido no Dubai e Abu Dhabi, então a razão está do lado de Mark Brend.

Este reconhece que a pulsação actual do género era inevitável: "Para aí nas primeiras seis décadas do século XX, a música electrónica apenas era definida em termos visionários. Mas agora, décadas depois,  a retrospectiva revela como todas as fases se encaixam. Não se trataram de eventos bizarros ancorados no tempo, mas sim de um futuro". Os renascidos vinis, os DJ Shadows - eles próprios samplados - e os actualizadíssimos Spotify e Soundcloud dão uma ajuda.

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